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Foi Isabê, artista que fez parte da idealização da mostra, quem me contou sobre a ideia de chamá-la de Estrada longa, em referência à música de Almir Sater. Eu já estava divagando sobre a lembrança de um filme que vi há pelo menos 15 anos, no qual o protagonista, um alemão fugido da Segunda Guerra Mundial, reclamava das estradas sem fim do interior do Brasil, quando Isabê, gentilmente, acrescentou que a escolha tinha a ver com a saudade que marca profundamente a experiência dos diversos artistas que precisam deixar seus estados de origem para seguir em direção a São Paulo em busca de mais oportunidades: “A saudade é uma estrada longa/ Que começa e não tem mais fim/ Suas léguas dão volta ao mundo/ Mas não voltam por onde vim”. 

A experiência a qual a artista se referia, certamente, não se resume a algo vivenciado somente por profissionais ligados ao campo da arte, muito embora tenha sido e continue sendo o motivo de incontáveis obras e relatos artísticos que dão “volta ao mundo”. Poderíamos considerá-la, se assim quisermos, como parte da verdadeira experiência humana da modernidade e de seu desdobramento na metrópole pós-colonial, atravessada por fluxos de migrantes e refugiados, por apagamentos e sobrevivências, domínio e resistência. Atravessada pelo conflito permanente de mundos desiguais. Pelo que nos une e pelo que nos separa: “A saudade é uma estrada longa/ Que começa e não tem mais fim/ Cada dia tem mais distâncias/ Afastando você de mim”. 

Antes, porém, de ir tão longe nesse caminho, é necessário que façamos uma pausa, ainda, do lado de cá. É necessário que paremos no acostamento para contemplar rapidamente a paisagem. E, uma vez que estamos tratando, neste texto, de uma exposição que reúne pinturas de 13 artistas do Centro-Oeste, é claro que essa paisagem é uma representação do interior do Brasil. Mas o que isso significa? Longe de repetir uma história já tão fartamente documentada e analisada, de entrar novamente na estrada que passa pela formação histórica, política e econômica do nosso país, na violência de discursos dominantes, de oportunidades assimétricas e centros excludentes, gostaria somente fazer alguns poucos apontamentos à guisa de preparar o terreno para o que realmente importa aqui, que são as obras e a ideia que permeia a reunião desse conjunto de artistas no espaço Lapa-Lapa.

Começarei mencionando a formidável constatação feita por Aline Figueiredo de que os artistas do centro-oeste encontraram vocação na pintura, a despeito de um mercado bem estabelecido, de instituições sólidas e exemplos concretos: a pintura aqui brota como mato, ela nos diz. Pintar aqui, eu acrescentaria, é pintar contra, pintar apesar de tudo. Ainda assim, pelo menos de uns trinta anos para cá, a situação vem mudando significativamente. Rafael Fonseca fez um breve balanço disso no texto que publicou recentemente na edição especial da Art Review feita por ocasião da sexagésima Bienal de Veneza. No artigo intitulado “Além de Rio & São Paulo”, o curador mencionou a importância do trabalho crítico da já mencionada Aline Figueiredo, no estado do Mato Grosso, e do artista e curador Divino Sobral, de Goiânia, no desenvolvimento de projetos importantes na região. Mencionou também, nesta ordem, o surgimento de espaços efervescentes como o Sertão Negro, o Barranco Ateliê, o Pé Vermelho Espaço Contemporâneo e o Museu de Arte e Cultura Popular da Universidade federal do Mato Grosso. A esta lista poderíamos acrescentar diversos espaços e agentes culturais que têm sido importantes para a crescente institucionalização da arte nesses estados, tais como o Museu de Arte de Anápolis, e o Salão Anapolino, responsável por revelar muitos artistas da região; galerias como a Referência Galeria de Arte, a Cerrado Galeria, a extinta, apesar de essencial, Alfinete Galeria, o espaço independente A Pilastra, dentre inúmeros outros. O Museu Nacional da República, o CCBB, a Caixa Cultural, que, ainda que de maneira limitada, estabeleceram em Brasília um ponto de acesso a grandes projetos expositivos. Isso tudo sem mencionar o papel mais que fundamental das universidades públicas e dos seus cursos de artes visuais no estabelecimento e na formação de diversas gerações de artistas e profissionais da cultura nesses estados. Longe de ser ideal, isso tudo permite que nós sigamos, mesmo que aos trancos e barrancos, “tocando o futuro do lado de cá” para utilizar a celebre expressão de Homi Bhabha. Não obstante, voltando ao texto de Fonseca, é preciso que nos perguntemos, mais uma vez, se o quadro atual oferece, afinal de contas, os meios de alcançar o reconhecimento e de desenvolver uma carreira sem que seja necessário que os artistas do Centro-Oeste peguem a estrada para São Paulo. “A saudade é uma estrada longa/ Que hoje passa dentro de mim/ Me armei só de esperanças/ Mas usei balas de festim.” 

A resposta a essa pergunta não é fácil e nem definitiva e é, na verdade, o próprio fato de ela ainda reverberar em nossas mentes que dá à mostra Estrada longa, e às obras que a compõem, contornos intensos e ambivalentes. Isso porque, de alguma forma, a estrada, o interior e o deslocamento, aqui, não são somente ideias abstratas. Como a palavra saudade vem recordar, é de vidas que estamos falando5.

 

A saudade que resulta da natureza “entre-lugar”, desse longo, e, diria até, permanente interstício que se impõe sobre a trajetória desses artistas é, se olharmos bem, a própria espessura do evento histórico representado em um discurso, de algum modo, fora do controle. Expresso a contrapelo no caráter não imediato, mas transitivo da superfície das suas pinturas. É isso que vemos nas figuras transeuntes e espectrais que aparecem nos quadros de Paulo Agi, ou nas paisagens tremeluzentes de Paulo Valeriano. Na iconografia hibrida, barroca e enigmática, apesar de tão crua, de Helton Vacari, Thales Pomb e David Almeida. Nos entrelaçamentos múltiplos e ancestrais de Kaya Agari. Nas fantasias cosmogônicas e auto-proliferantes de Eliane Fraulob. Nas desconstruções imagéticas da identidade e do cotidiano de Paty Wolff e Danillo Butas. Na densidade lenta e impenetrável de Jesus Credo e Isabê. No espaço doméstico redesenhado como espaço-político de Lina Cruvinel. Ou, por fim, na paisagem de um “além” tumultuado de histórias, que fica logo ali, na beira de uma estrada do Goiás, de Isadora Almeida. 

Longe de oferecer uma identidade da pintura feita no Centro-Oeste, a exposição busca afirmar a necessidade do reconhecimento de presenças multifacetadas, cambiantes e abundantes como o próprio Brasil, este país continental, fatalmente ocorre de ser. Um reconhecimento, porém, que não demanda somente o centro e seus mecanismos de validação, mas que exige de nós mesmos um reconhecimento recíproco. Parafraseando Frantz Fanon6, eu diria que no mundo em que viajamos, na longa estrada, estamos continuamente a criar-nos. Seguimos em frente, não andamos para trás, mas também não perdemos de vista o retrovisor: “A saudade é uma estrada longa/ Nem é boa e nem é ruim/ Vou seguindo sempre adiante/ Nunca volto /Eu sou mesmo assim”. 

Brasília, abril de 2025

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